15 janeiro 2013

João Nunes: porque nunca devemos escrever de graça

Fonte: www.joaonunes.com. Texto escrito pelo roteirista e escritor João Nunes, publicado em seu site em 26/06/2012.



João Nunes é natural de Portugal, hoje morador de Manaus.
Roteirista de talento, os posts publicados em seu site abordam a carreira de roteirista audiovisual, sempre com muita informação e humor. Para aqueles que nunca leram seus textos, lembramos que o autor utiliza terminologias portuguesas, como "guionista" ao invés de "roteirista", "guião" ao invés de "roteiro".

Vamos ao texto!


"A tentação de escrever de graça


Quem começa a ten­tar sin­grar na pro­fis­são de gui­o­nista mais tarde ou mais cedo vai ser desa­fi­ado a escre­ver de graça.
As jus­ti­fi­ca­ções serão sem­pre dife­ren­tes; a res­posta, pelo con­trá­rio, deverá ser sem­pre a mesma: “Não, obri­gado; não posso dar-​​me ao luxo de tra­ba­lhar sem ser pago”.
Con­tra mim falo, pois já ali­nhei em situ­a­ções des­sas mais de uma vez. Deixem-​​me con­tar duas des­sas experiências.

Primeiro caso

Um amigo, rea­li­za­dor de publi­ci­dade muito talen­toso, convidou-​​me há alguns anos atrás para uma con­versa acerca de um pro­jeto de cinema.
O seu obje­tivo era apre­sen­tar um guião, escrito a par­tir de uma ideia sua, a um impor­tante pro­du­tor por­tu­guês. O pro­blema é que não tinha tempo, nem voca­ção, para o escre­ver por si mesmo.
Infe­liz­mente tam­bém não tinha pos­si­bi­li­dade de pagar a um gui­o­nista para o fazer.
Devia ter-​​me escu­sado ime­di­a­ta­mente, mas por sim­pa­tia pedi-​​lhe para me expli­car a ideia. Era ape­nas um esboço, muito crú, mas alguns dos seus ele­men­tos mexe­ram com a minha imaginação.
Pas­sa­dos alguns dias avan­cei com uma con­tra­pro­posta: não escre­ve­ria um guião mas se ele esti­vesse inte­res­sado podia desen­vol­ver um tratamento.
É óbvio que ele acei­tou. O que é que tinha a perder?
Come­çara a nego­ci­a­ção ape­nas com uma ideia inci­pi­ente e ia sair dela com um tra­ta­mento pronto a apre­sen­tar a um pro­du­tor, sem gas­tar mais do que a bebida que me pagou.
Escrevi o tra­ta­mento, que me deu muito gozo e satis­fa­ção, mas tam­bém muito tra­ba­lho. Enviei-​​o.
Pas­sa­dos alguns dias, recebi uma pequena mon­ta­gem em vídeo com uma espé­cie de teaser-​​trailer (ele é um tipo muito talen­toso, como já referi).
Fiquei entu­si­as­mado: “Wow, isto vai ser bom”.
E depois, mais nada.
Tanto quanto sei o pro­jeto mor­reu sem sequer ter sido apre­sen­tado ao tal produtor.

Segundo caso

Há três anos atrás tive uma ideia para uma mini-​​série de tele­vi­são. Modés­tia à parte, era uma boa ideia.
Por minha conta e risco desen­volvi os tra­ta­men­tos com­ple­tos de todos os epi­só­dios. Quando fiquei satis­feito com o resul­tado, apresentei-​​o a um produtor.
Ado­rou o pro­jeto, que encai­xava quase per­fei­ta­mente nos seus pla­nos para uma co-​​produção importante.
Só fal­tava o “quase”.
Para ficar per­feito seria pre­ciso intro­du­zir algu­mas alte­ra­ções no tom e enredo da estó­ria. Estava dis­posto a fazê-​​las?
Ape­sar de não muito satis­feito com o rumo suge­rido acei­tei fazer as mudan­ças pedi­das. Às quais se segui­ram mais algu­mas suges­tões, e depois ainda outras indicações.
Final­mente decidi parar de escre­ver, o que coin­ci­diu com a infor­ma­ção de que tinha havido um con­tra­tempo na co-​​produção: o pro­jeto tinha sido sus­penso, e só eu ainda não sabia de nada.

Cada um é como cada qual

Não estou abor­re­cido com nenhum dos meus inter­lo­cu­to­res nes­tas duas estórias.
Limitaram-​​se a apro­vei­tar a minha dis­po­ni­bi­li­dade para tra­ba­lhar de graça. Qual­quer pes­soa no lugar deles faria o mesmo.
A culpa não foi deles; foi minha.
No pri­meiro caso cometi o erro de me dei­xar apai­xo­nar pela ideia, quando não havia con­di­ções para pagar o meu tra­ba­lho. Apa­ren­te­mente, apaixonei-​​me até mais do que o meu amigo.
No segundo caso, o erro foi ainda maior. Acei­tei fazer alte­ra­ções a um tra­ba­lho meu — ainda por cima alte­ra­ções em que não acre­di­tava com­ple­ta­mente — sem ter sequer um con­trato assinado.

Porque é que os produtores agem assim?

Por­que podem.
Por­que nós, os gui­o­nis­tas, os deixamos.
Por­que são humanos.
Qual­quer pro­du­tor que se preze tem, em cada momento, vários pro­je­tos em desen­vol­vi­mento. O seu entu­si­asmo em rela­ção a esses pro­je­tos vai vari­ando com o tempo, em fun­ção de uma imen­si­dade de fatores.
O pro­jeto favo­rito num deter­mi­nado momento pode, três meses depois, ter sido arru­mado numa gaveta e esquecido.
Mas há outro fator ainda mais impor­tante, que deriva da psi­co­lo­gia humana.
Quando estive em Angola pela pri­meira vez tra­ba­lhei com umaONG que agia na área da pre­ven­ção da AIDS. Uma das coi­sas que me sur­pre­en­deu foi que, nas suas ações de cam­pa­nha, ven­diam os pre­ser­va­ti­vos por um preço irrisório.
Quando per­gun­tei por­que não os ofe­re­ciam, já que o preço era tão baixo, deram-​​me uma expli­ca­ção que nunca mais esqueci: sem­pre que ofe­re­ciam os pre­ser­va­ti­vos as pes­soas não lhes davam valor e não os usavam.
Pelo con­trá­rio, quando pediam algum dinheiro pelos pre­ser­va­ti­vos, mesmo que fosse muito pouco, aumen­tava a sua cre­di­bi­li­dade e a pro­ba­bi­li­dade de serem usados.
Pen­se­mos nos nos­sos guiões da mesma forma.
Quando os ofe­re­ce­mos esta­mos, na prá­tica, a tirar-​​lhes o valor. E, não tendo valor, a sua pro­ba­bi­li­dade de virem a ser uti­li­za­dos dimi­nui muito.
Se um pro­du­tor tem três ou qua­tro pro­je­tos em curso, e só inves­tiu dinheiro do seu bolso num deles, a qual é que vai dar mais aten­ção: aos que lhe caí­ram no colo, de graça e sem esforço? Ou àquele em que está a pagar juros ao banco?
Pior ainda — tra­ba­lhando sem remu­ne­ra­ção esta­mos a desvalorizar-​​nos a nós mes­mos. E se nós não nos valo­ri­za­mos, por­que outros o hão de fazer?

O custo de oportunidade

Há uma outra razão para não escre­ver de graça. Seth Godin refere-​​a num artigo de ontem: é o custo de oportunidade.
As horas que pas­sa­mos a tra­ba­lhar sem remu­ne­ra­ção são horas em que não esta­mos a tra­ba­lhar em pro­je­tos remu­ne­ra­dos. Ou, pelo menos, a tra­ba­lhar em pro­je­tos nos­sos, que mais à frente nos pode­riam tra­zer dividendos.
São, tam­bém, horas em que não esta­mos com a nossa famí­lia, com os nos­sos ami­gos, ou a cui­dar de nós. Qual o valor que damos a isso?
Numa época em que todos, de uma forma ou de outra, ven­de­mos o nosso tempo, este torna-​​se a moeda mais preciosa.
Como Seth Godin sali­enta, dizer “não” tem um custo, mas dizer “sim” tam­bém tem.

Como agir então?

O prin­cí­pio é sim­ples: só tra­ba­lhe de graça quando está a escre­ver para si pró­prio, por sua ini­ci­a­tiva, num pro­jeto de seu inte­resse.
Tudo o que não encaixe nesta defi­ni­ção é uma encomenda.
“Pre­ciso de uma sinopse, uma coisa sim­ples, só duas ou três pági­nas” — é uma encomenda.
“Tenho este guião, que é muito bom, mas que­ria dar-​​lhe uma revi­são­zi­nha; fazes isso num ins­tante” — é uma encomenda.
“Ado­rei o teu pro­jeto e acho que vou ficar com ele. Mas gos­tava de ver umas peque­nas alte­ra­ções para ter mesmo a cer­teza” — é uma encomenda.
E uma enco­menda de escrita nunca deve ser aceite:
1.    Se não hou­ver remu­ne­ra­ção em cima da mesa;
2.    Se não hou­ver um con­trato escrito e assi­nado pelas duas partes.
O valor da remu­ne­ra­ção pode variar muito; as moda­li­da­des de paga­mento e os pra­zos tam­bém; os ter­mos do con­trato, idem idem.
Mas nunca aceite tra­ba­lhar por enco­menda sem remu­ne­ra­ção e sem contrato.

E não pode haver excepções?

Claro que sim. Para tudo na vida há excepções.
Se fez o curso de cinema com um amigo pro­du­tor, ambos estão a come­çar as car­rei­ras, ele tem ainda menos dinheiro do que você, e os dois ado­ram o pro­jeto — por amor de Deus, escreva o guião.
Se é um filme inde­pen­dente ultra low cost, em que nin­guém, do rea­li­za­dor ao assis­tente de pro­du­ção, vai ser remu­ne­rado — vá na fé e escreva de graça.
Se está a namo­rar o rea­li­za­dor de uma curta-​​metragem (uma longa já é outra con­versa…), não seja egoísta — escreva o guião de que ele pre­cisa. O amor é lindo.
Mas, mesmo que não haja dinheiro envol­vido, faça sem­pre um contrato.
Quando o guião for pro­du­zido, o filme indie der dinheiro, a curta come­çar a ganhar prê­mios em fes­ti­vais, vai agradecer-​​me por este conselho.

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Um comentário:

Profa. Eunice Silva disse...

Amei suas colocações sobre trabalhar de graça. Elas sevem não só para os roteiristas, mas também para várias profissões "criativas"!